Vilém Flusser, em sua coletânea de ensaios Filosofia da Caixa Preta, apresenta análises que considera como elementares para a construção de um arcabouço filosófico sobre a fotografia e suas relações com a condição humana, a história da comunicação e das representações das cosmovisões, seja as mais antigas e tribais bem como no mundo moderno, no qual a fotografia é inventada, fato que Flusser considera tão importante como a invenção da escrita:
Textos foram inventados no momento de crise das imagens, a fim de ultrapassar o perigo da idolatria. Imagens técnicas foram inventadas no momento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria. Tal intenção implícita das imagens precisa ser explicitada.
Flusser aponta essa relação texto-imagem como fundamental para a compreensão da história do Ocidente, relação de conflito, mas dialética, na qual cada pólo absorve aspectos do outro, e faz com que imaginação – capacidade de compor e decifrar imagens – e conceituação – capacidade de compor e decifrar textos – se neguem e se reforcem mutuamente. As conseqüências diretas na produção de conhecimento e na cultura de massa são indicadas pelo filósofo. A crise dos textos gera o naufrágio da História, e surgem as imagens técnicas para suplantar essa ruptura. Mas Flusser não deixa de apontar para o risco da total substituição dos textos por tais imagens, que apenas aparentemente não são frutos “da cabeça” de um artista que lida com imagens, como um pintor. O fotógrafo e seu aparelho também fabricam suas imagens, e é por passar a impressão que esse processo, na produção das imagens técnicas, é menor, menos intenso, que ele denomina o complexo aparelho-operador de caixa-preta. Alusão ágil, que vai do aspecto físico e mecânico da máquina fotográfica ao mistério das caixas pretas das aeronaves, que ao seu modo também registram fatos, sempre de uma forma por demais discreta. Flusser, com tal metáfora, focaliza a natureza e a atividade do aparelho fotográfico e o trabalho do fotógrafo.
Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta.
Aqui, o filósofo tcheco-brasileiro dá a direção e a chave para a crítica:
Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos decifrá-las.
Filósofo completo, que soube encarar as fragilidades conceituais do cartesianismo, com uma teoria do conhecimento própria, forjada com ferramentas conceituais de alta precisão na obra A Dúvida, em que impõe aos entusiastas do trabalho de René Descartes pesadas e bem fundamentadas objeções ao de omnibus dubitare do qual tanto se valem os céticos modernos, Vilém Flusser não deixa de apresentar em Filosofia da Caixa Preta a força de sua gnosiologia. Livre de racionalismos, vale-se da racionalidade ao investigar o ato de fotografar, a câmera, a fotografia na folha, os aspectos físicos da produção das imagens técnicas e os aspectos psicológicos, semiológicos e sociais da recepção de tais imagens. Ou seja, mais que meramente racional, Flusser também é empírico, e assim concilia habilmente o potencial de escolas filosóficas que muito se digladiaram ao longo da história da construção do pensamento ocidental sem perceber os adeptos de uma ala e da outra que a solução para tal problema já estava presente onde tudo começou, na obra do principal estruturador da forma ocidental de pensar: Aristóteles. Também outras dimensões do conhecimento humano estão ali presentes, contribuindo. Ali está o sensório-motriz, e também as intencionalidades, as ações e paixões, o aspecto fronético do conhecimento, enfim.
Entretanto, com a humildade que aos grandes mestres pertence e o torna gigantes, Flusser não passa por cima da dúvida enquanto ferramenta para empreendimentos teóricos sérios: cada verbete do glossário que ele, didaticamente, apresenta ao início da coletânea de ensaios contém o sentido que ele mesmo avisa que é provisório. Flusser sequer tenta fincar estacas. Quer apenas mapear o terreno. Mas o faz com tanta propriedade que já não é possível, ao ver as bases, deixar de visualizar ao menos o “esqueleto” de uma casa que tantos outros almejam alocar tijolos e abrir janelas. Hábil arquiteto, Vilém Flusser sabe trazer à vista o arché de um novo tema para a filosofia como poucos filósofos. Com sua visão privilegiada, não pisa nos ovos das cobras que picaram os olhos de outros pensadores, que, cegos, podem comprometer a importante tarefa filosófica a que ele se propõe e a outros convida: decifrar as imagens técnicas – as imagens produzidas por aparelhos.
E é na força da crítica e da reflexão filosófica que Flusser acredita para que a humanidade possa superar a remagicização e manipulação imposta pelas imagens técnicas. “A crítica pode ainda desmagicizar a imagem”. A cegueira de alguns ele considera monstruosa e de antemão os tem como incapazes de cooperar para o empreendimento que propõe: para ele, o crítico pode estar também envolvido, também programado para uma visão mágica do mundo, vendo forças ocultas em toda parte. Desta forma, o próprio aparelho tornar-se-á uma força oculta: o jornal, o partido, a agência de publicidade,o parque industrial são deuses a serem exorcizados pela fotografia e tudo isso, para Vilém Flusser, não passará de hierofania de segundo grau. E dispara: “a crítica da Escola de Frankfurt é um bom exemplo desse paganismo de segundo grau, exorcismo do exorcismo”.
“A realidade da guerra do Líbano, a realidade ela mesma está na fotografia. Não pode estar alhures. Se o receptor da fotografia for para o Líbano ver a guerra com seus próprios olhos, estará vendo a mesma cena, já que olha tudo pelas categorias da fotografia. Está programado para ver magicamente”. E não só tal homem está programado – e entenda-se aqui programa como “jogo de combinação com elementos claros e distintos”, como os próprios fotógrafos e críticos. Esses elementos estão na estrutura do aparelho, nas teorias aplicadas na construção de todo o material necessário para se construir uma câmera, para se fazer fotografia. Papel, lentes, filmes, etc. Todo o processo de abstração dos eventos, transmutados na fotografia como mera cena, para Flusser, dependem da categorização que todos esses elementos irão gerar, que com uma boa sacada resume a condição digamos, cognitiva da fotografia enquanto tentativa de apreender algum dado da realidade:
Em fenomenologia fotográfica, Kant é inevitável.
Para Kant, conhecemos segundo podemos conhecer, mas não conhecemos a “coisa-em-si”. Flusser identifica na fotografia a metáfora mais precisa da incognoscibilidade do “númeno” defendida pelo baixinho de Köenigsberg. Com fotos e câmeras, tudo o que temos é “fenômeno”. Para superar a alienação que aparelhos com essa condição geraram nos homens da cultura massificada, que pensou o aparelho e agora pensa sob as categorias do aparelho (e Flusser lembra que o mesmo processo aconteceu no século XVIII – o “mecanicismo”) há que se debruçar sobre os quatro problemas essenciais da fotografia, que Flusser aponta: o do aparelho, que é “infra-humanamente estúpido e pode ser enganado”; os programas, que permitem a inserção de elementos humanos não previstos; as informações que implicam símbolos; e a imagem que implica magia. Os fotógrafos experimentais, segundo Flusser sabem que são os problemas da imagem, do aparelho, dos programas e das informações que devem ser resolvidos.
“Urge uma filosofia da fotografia para que a práxis fotográfica seja conscientizada” afirma Flusser, que, com tais reflexões e análises, remete à crítica de C. S. Lewis sobre a produção de conhecimento técnico do homem, que antes de libertá-lo, escraviza-o. “A conquista da Natureza pelo Homem, caso se realizem os sonhos de alguns cientistas planejadores, significaria que algumas centenas de homens estariam governando os destinos de bilhões e bilhões.” Para Lewis, a cada avanço tecnológico, a humanidade corre o risco de aumentar o domínio do homem pelo homem, e não necessariamente aumentar o domínio do homem sobre a natureza. Flusser parece ter uma visão muito clara disso, e considera a atividade filosófica como uma busca pela liberdade. No que concerne à fotografia, seu esforço neste sentido fica evidente na seguinte declaração: “a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexão sobre o significado que o homem pode dar a vida”.
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