quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Liberdade: auto-governo e governo civil

Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens.
1 Co. 7: 23

Problemas políticos, no fundo, são problemas religiosos e morais.
Russel Kirk

“Quem é livre e pratica um ato livre é quem responde pelo que fez”, afirmava Mário Ferreira dos Santos, que identificava no Renascimento a origem de um conceito abstrato de liberdade que proclamava a irresponsabilidade. Por isso, o filósofo considerava exagerados os elogios que alguns prestavam a esse período da história. Não só a responsabilidade é evocada na afirmação de Mário Ferreira, mas também a racionalidade, que, como ele bem observa nas páginas finais de sua obra Teoria do Conhecimento, é excludente - “ou é... ou não é”. É fácil perceber porque tirania e relativismos morais e epistemológicos sempre andaram juntos.

Aristóteles, cuja filosofia política nada mais é do que uma extensão do estudo da ética e da natureza humana, via as ações humanas livres como aquelas desprovidas de coação e ignorância; sem liberdade da vontade, para agir e para escolher, não há ação moral alguma. Como outros gregos, cria que o homem que conhecesse o bem não poderia deixar de agir de acordo com ele, enunciado que o cristianismo atacou com veemência em sentenças como o franco “se vós, que sois maus” lançado pelo próprio Cristo diretamente aos ouvidos de seus seguidores no Sermão do Monte, e “faço não o bem que quero, mas o mal que não quero fazer, esse faço o tempo todo”, do apóstolo Paulo, presente na carta que é uma das mais importantes e brilhantes sínteses da fé cristã, endereçada à igreja que vivia em Roma.

Portanto, a mais ampla autodeterminação imaginável não deve satisfazer ao cristão como conceito pleno e verdadeiro de liberdade. Tampouco será a ausência de governo que a proporcionará, mas sim o governo certo. Fala-se nessa palavra, “governo”, e já se pensa no governo civil: monarquias, repúblicas, parlamentos, presidentes, etc. Rousas John Rushdoony se lamentava disso, e lembrava que, antes de tudo, governo é auto-governo e que essa associação equivocada bem denotava a mentalidade de uma geração cuja sanha de seu respectivo governo civil era ser a única e suprema forma de governo sobre os homens.

Ao observar a história e se ater às grandes especulações filosóficas sobre o poder temporal, infere-se que boas definições de liberdade política são aquelas que a apontam como resultado da mútua resistência entre forças políticas adversárias (estado versus igreja/religiosos versus intelectuais, por exemplo), ou como fruto de um ambiente no qual valores como a sacralidade da vida, a igualdade jurídica entre os homens e a responsabilidade pessoal estejam firmemente consolidados. Todos estes valores caros aos cristãos, e que geraram ótimos resultados políticos e culturais onde a cristianização das populações foi mais profunda.

Neste sentido, Rushdoony, como profundo conhecedor da cultura e da Bíblia, ainda dizia: “para se ter um governo civil livre é necessário ter em primeiro lugar homens cujo maior desejo é o auto-governo responsável sob Deus”. Outros apologetas da liberdade política que a viram apenas como feliz conseqüência de diversos fatores, seguiram a mesma linha: “quanto maior for o controle dos homens sobre si mesmos, menor será a necessidade de controles externos”. Não espanta que, com sua visão pessimista (muito mais precisa, porém, do que a de muitos cristãos moderninhos) da natureza humana, Hobbes defendia um governo absolutista. Talvez o mais grotesco de seus equívocos foi o de defender o controle despótico justamente de um único... ser humano.

A Bíblia fala que “onde o Espírito de Deus está, aí há liberdade,” - versículo que deve servir de alicerce para toda a construção teórica verdadeiramente cristã sobre política – e que o discípulo de Cristo é “templo do Espírito Santo”. O cristão autêntico sabe sobre o que se funda a liberdade, sabe onde ela começa. “Se o Filho, vos libertar, verdadeiramente sereis livres”. Não é à-toa que são justamente os cristãos que dão ouvidos a teses que tornam o governo civil mais importante e mais poderoso do que ele realmente deve ser, os mais propensos a abrir mão do padrão de auto-governo exposto nas Escrituras. Então, chamam seus irmãos de legalistas, enquanto defendem os projetos totalitários de incrédulos e escarnecedores. Da mesma forma, quando aderem aos credos da “teologia do processo” e do “teísmo aberto”, a um só tempo relativizam a soberania de Deus e se tornam discípulos diretos ou indiretos de Hegel, coincidentemente, o papa da estatolatria moderna.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cristãos, lembrem-se: ‘noblesse oblige’

É fácil estar atento à suposta sofisticação dos mais variados bens de consumo em seus detalhes. Não tenho dúvida de que qualquer cidadão comum conhece ao menos uma pessoa que não dedique grande parte do seu potencial intelectual e cognitivo ao glamour de certos artefatos ou às qualidades de certas tranqueiras criadas para facilitar a vida em algum aspecto.

Quem já perdeu horas assistindo amigos discutindo as proezas de um relógio Tag Heuer, ou dos acessórios opcionais de uma nova motocicleta, sabe de qual espécie de frivolidades e aridez mental me refiro. Não é preciso dizer que, entre cristãos, a coisa toda fica ainda mais ridícula e irritante.

Difícil parece ser, atualmente, imaginar a existência daquelas sutilezas presentes nas mais nobres realizações humanas, advindas dos grandes atributos da imaginação e do pensamento racional saudável, quando este se atém à busca de tudo aquilo que é belo, bom e verdadeiro - e que riqueza alguma compra. Aí está talvez a característica mais notória do filisteu (“o bárbaro imerso na cultura”, segundo Richard Weaver): o deslumbramento por tudo aquilo que facilita a vida do homem, gerando conforto e status, acompanhado da repulsa a toda expressão capaz de clarificar os aspectos mais profundos da condição humana. Quando “bom gosto” e “estilo” se reduzem à mera capacidade de se enquadrar em certos padrões de consumo, os homens já perderam de vista o que, de fato, os torna humanos. O apego ao status e o encanto “coisista” nada mais são do que as preocupações mais básicas e comezinhas, comuns a qualquer animal, numa polaridade distorcida e potencializada.

Esses e outros sintomas de alienação, contudo, não afetam apenas às elites ignaras e os novos ricos opulentos. Tanto o “idiota flamejante” na Mercedes-Benz “com cascata artificial e filhote de jacaré”, do qual falava Nélson Rodrigues, como o pessoal das periferias, sem estudo e entretidos com asneiras proferidas por participantes de reality-shows, estão sempre correndo o risco de dar mais um passo adiante no processo sobre o qual Julian Marías alertava: o cavalo não se descavaliza, mas o homem sim, este pode desumanizar-se.

Weaver também observou que

Uma das mais estranhas disparidades da história é a encontrada entre o sentimento de abundância das sociedades mais antigas e simples e o sentimento de escassez das sociedades atuais, ostensivamente ricas.

E nada pior do que tentar consertar um erro com outro. Qualquer pessoa hoje, enjoada do consumismo abobalhado, logo se torna vítima da “engenharia da culpa” de que as ideologias coletivistas se valem com diabólica habilidade. Reinterpretando a história após evocar antropologias e axiologias auto-indulgentes e falaciosas, estas ideologias têm sido formidáveis incentivadoras de uma desumanização brutal. Otto Maria Carpeaux foi incisivo: “o fascismo propaga-se e vence através das classes médias, das quais é a expressão triunfal”. E fascismo, que fique claro, tem e sempre teve tudo a ver com coletivismo, relativização de valores, revolução, anti-cristianismo e estatismo brutal. Qualquer semelhança com o consenso cultural e político vigente no Brasil de hoje - anticristão e socialista até a medula - não é mera coincidência.

E aí estão, pomposos e melodramáticos, magnatinhas e intelectuais, todos falando em nome do povo, incapazes, porém, de riscar o verniz de suas unhas para ajudar os necessitados sem mostrar suas faces em campanhas com mensagens lacrimogêneas. O cinismo do altruísmo terceirizado (“é função do estado...”) e dessa caridade anunciada aos quatro ventos choca e denota o quão falsificadas estão as virtudes entre os que exercem influência sobre a mentalidade das massas. Que cristãos repitam essas bobagens, isso só evidencia que eles próprios perderam de vista os fatos que a graça comum e a criação divina apontam com tanta clareza, os quais mesmo tantas das melhores cabeças não-cristãs perceberam. Ao cristão, o filistinismo é ainda mais vergonhoso e está se tornando cada vez mais comum. Portanto, a troca do falso pelo verdadeiro é cada vez mais urgente e imprescindível.

Que os filhos do Altíssimo acordem. Que os autênticos detentores da Revelação, resgatados pelo amor de Cristo e então direcionados pelo Espírito Santo para buscar “toda boa dádiva e dom perfeito”, que vem de Deus, parem de viver como filisteus, reflitam, façam jus à sua condição, e ajam. Num tempo de elites bárbaras, em que o sentido de autêntica nobreza simplesmente perdeu-se, vale lembrar sempre: noblesse oblige. A condição de nobreza traz suas obrigações. O cristão reinará com Cristo. Que viva com a honra de um príncipe de um reino que jamais se acabará desde hoje, colocando todas as suas potencialidades a serviço da obra de Deus, e todas as suas convicções em harmonia com Sua Palavra.

C. S. Lewis foi um homem que, com todas as suas falhas, aprendeu que devemos amar a Deus não só com a alma e com todas as nossas forças, mas também com todo o nosso entendimento. Na obra Cristianismo Puro e Simples (Mere Christianity), foi contundente:

Deus não detesta menos os intelectualmente preguiçosos do que qualquer outro tipo de preguiçoso. Se você está pensando em se tornar cristão, eu lhe aviso que estará embarcando em algo que vai ocupar toda a sua pessoa, inclusive seu cérebro.

Sem entendimento, e sem buscar a presença de Deus – pois quem realmente ama sempre quer estar perto - , cristão algum estará à altura da missão que lhe cabe. Estará conformado a este século e, sem contato com a sua Palavra - o Logos, aquele sem o qual “nada do que foi feito se fez”-, não poderá ter “a mente de Cristo” e “andar por modo digno do evangelho”, sendo, de fato, “sal da terra e luz do mundo”.

E o problema todo é muito mais do que simplesmente ministerial, sacerdotal, para cada um dos filhos de Deus. Também é muito mais do que político, econômico, cultural, ideológico ou civilizacional.

São vidas que estão em jogo. E Deus ama essas vidas.